Quarto de Charlie C. V. Beavuorr

O animago seguiu com o sobrinho no dorso, sequer dando trela para os puxões na vasta juba amarelada, evidente que ele gostaria de ficar com os adultos na piscina, sobretudo pela presença do ilustre ator na residência. Contudo, já mais do que havia passado de sua hora de dormir, fora que no estado em Brett se encontrava, não inspirava nenhuma confiança deixá-lo perto da criança.

Balançava o rabo de um lado para o outro num gesto claro que não estava nem se importando com o "show" que o garoto estava dando nas suas costas, literalmente. Subiram o lance de escadas que dava acesso aos quartos, o leão aprumou ainda mais as patas que não faziam um ruído sequer, para fazerem menos ainda; não queria interromper o sono de ninguém. Com uma cabeçada, abriu a porta do quarto de Charlie que ia entreaberta, abaixando-se em seguida para que o pequeno descesse de suas costas.

Escancarou a bocarra num breve bocejo, a cobrindo com uma das patas dianteiras. Engraçado, como mesmo sob aquela forma, ainda era possível distinguir os traços humanos que o diferiam de um leão, propriamente dito. Sentou-se de um jeito que somente as patas traseiras iam flexionadas, as duas da frente, se mantinham eretas e davam bem a dimensão da postura imponente que portava. Repousou o olhar sobre o sobrinho que não se conformava em ter que dormir, como Kitty fazia falta, viu. Dava até vontade de ir chamá-la para cuidar do pequeno birrento.

Charlie estava tão encantado com a presença do tio da tevê em sua casa, que sequer percebeu que havia montado no lombo do tio leão e ambos seguiam de volta à mansão. Só quando adentraram, é que Charlie caiu em si e começou um berreiro sem fim - Bbbbbwwwwwaaaaaaaaaauuuhhhh! - chorou, aos berros - Nãããããoooo tio Boooo, eu 'telo' o tiooo Brett - a voz agudinha logo tomava conta de toda sala, da mansão por completo - Pooor fa-favoorr tio Booo - suplicava, puxando a juba dele com raiva, desferindo-lhe socos que nem doíam às costas.

- Nããããããoooooooooooooooo! - urrou, como se estivessem retirando algo de muito precioso a ele. De certo modo estavam, Charlie ama-adora o seriado, e tê-lo ali na sua casa, sem poder falar com ele. Oh! Como esse mundo era cruel, desde cedo ele estava vendo isso.

- Bwwwwaaaaaaaaaauuuuhhh! - ao entrarem no quarto, estava tudo perdido. O pequeno correu até uma pilha de Legos e a atirou contra o tio - Eu te odeeeeeeeiiiioooo, tio Booooooo! - de rosto lavado em lágrimas - Fuuuuuuck you! - chegando a perder o ar. Respirava com força, mirando o tio com muita raiva no coraçãozinho.

O leão permaneceu na mesma postura austera, mesmo quando teve alguns brinquedos de montar atirados contra a fronte. Não perderia a paciência com o sobrinho, pelo menos, não até o momento. O choro era bem irritante, mas com o tempo, passa-se a se acostumar com o som. Sabia que anos mais tarde sentiria saudades daquela época.

Ele entendia o lado do sobrinho, que nada mais queria do que ficar perto daquele que tanto admirava, mas ele estava fazendo aquilo para o próprio bem dele. A primeira frase mais forte "eu te odeio", tudo bem; odiava coisa nenhuma, apenas deixava-se levar pelas emoções instantâneas. Nada mais natural.

Bastou o segundo insulto, o palavreado de baixo calão... ah! Aquilo esquentou o sangue, do até então, calmo animago, que aprumou as patas no chão e saltou para o outro lado do quarto onde o sobrinho estava fazendo sua birra. Exibiu os enormes caninos em ameaça, só então percebeu que estava sob a forma animalesca, a julgar pela expressão de horror no rosto do menino. Transformou-se num piscar de olhos sob a forma humana novamente e bradou - O que foi que você disse?! - agachando-se para ficar na mesma altura dele - repete! Hãn! Vamos! - de cenho franzido.

- Você tá muito mal acostumado, Charlie! Você pensa que sou o banana do teu pai, não sou não! - chegava a chacoalhá-lo pelos bracinhos finos e frágeis, muito embora a vontade fosse de esquentar o bumbum dele - Nunca mais fale isso nem para mim, nem para ninguém! Estamos entendidos, mocinho?! - afastou-se do sobrinho, antes que cometesse alguma besteira - se eu falei que é hora de dormir, então é hora de dormir. Sem choro, nem drama, entendeu?! - encarando-o muito bravo e decepcionado.

O pequeno príncipe permaneceu encarando o tio, mas não aguentou quando o leãozinho fez cara de bravo e saltou em sua frente. Charlie recuou alguns passos, muito apavorado, do jeito que o tio Boo estava, capaz de virar refeição. Dessa noite não passava.

No mesmo instante, o pequeno engoliu o choro e fez uma carinha triste ao bruxo que o estava assustando. A criança não sabia bem o que havia dito, quer dizer, sabia que era um nome feio que havia falado, mas não sabia o grau de feiura que a palavra trazia em si mesma - e-eu o-ouvi i-sso do tio Brett, na tevê - tentou se justificar, escondendo-se por detrás das mãozinhas trêmulas.

A única coisa que conseguia fazer, veementemente, era sacudir a cabeça afirmativamente, com a duras palavras do tio. - 'De-deculpa' tio Boo - pronunciou, a voz mal chegava a sair. Correu até o tio, abraçando-lhe as pernas - eu tô com medo das sombras e eu, eu, eu... só queria ver o tio Brett. - Charlie sentia-se extremamente envergonhado e arrependido pelo ocorrido. Levou o polegar na boca, com os olhinhos cada vez mais pesados.

Fora pego de surpresa por Charlie ao saber onde ele tinha aprendido aquela palavra tão feia. Quer dizer, nem tanto assim, visto que as redes de comunicação trouxa, neste caso a televisão, só ensinava porcaria. Levou as mãos aos cabelos loiros, não sabia bem como agir, afinal, aquele não era o seu filho.

Boone retribuiu o abraço com ternura, embora ainda demonstrasse o cenho fechado ao mesmo. Se ele pensa que com meia dúzia de gestos e palavras ia ficar tudo bem, estava muito enganado. - Desculpas aceitas, Charl - falou, um pouco mais acolhedor - que sombras? - indagou, logo se lembrando dos pesadelos constantes que ele tinha. - Olhe aqui, não tem nada aqui embaixo - erguendo a coberta vermelha e dourada, para mostrar que não havia nada embaixo da cama dele - amanhã você vai ver o tio Brett, ele vai dormir aqui essa noite. Deve até ter ido para cama - disse, abaixando-se em frente ao sobrinho para arrumar o seu pijama.

- Mas eu não quero mais saber de nomes feio aqui, okay? - estreitou as sobrancelhas, numa careta de bravo, engraçada. - Você vai ficar de castigo. Nada de programa do tio Brett e de brinquedos durante o restante da semana - falou, num tom severo. E ai de quem dissesse o contrário - já sabe, se eu pegar você desrespeitando as minhas ordens... vai ver só - Boone sabia que o pequeno sempre dava um jeito de fugir dos castigos, sempre com Kitty para acobertar tudo; isso quando não pedia autorização de um dos tios que nem estava sabendo da reprimenda, de modo a conseguir o que queria.

O bruxo esperou Charlie se deitar e se sentou ao seu lado, no chão - se eu fosse um hipogrifo, pelos céus ia pairar... - Iniciou uma canção infantil bruxa, enquanto acariciava os seus cabelos. Não tardou até o pequeno caísse no sono pelo cansaço, principalmente do choro. Boone o cobriu e depositou um beijo manso sobre o moicano de finos fios loiros. Retirou-se do quarto, ainda havia mais três burros velhos na piscina que inspiravam cuidados, por conta das biritas. Deixou o local.